MONTANHAS IBÉRICAS

Neste Blog partilho com os leitores a minha paixão pelas Montanhas Ibéricas, lugares únicos, cada vez mais raros, onde a beleza das paisagens, a preservação dos ecossistemas e a utilização sustentável pelo homem se unem de uma forma harmoniosa e equilibrada.

25 outubro 2005

VESTÍGIOS DA ÚLTIMA GLACIAÇÃO

Publicada por Paulo Almeida Santos


O Parque Natural de Somiedo, localizado na zona ocidental da Cordilheira Cantábrica, criado em 1988 e distinguido em 2000 com o título de Reserva da Biosfera da UNESCO, representa um hino à natureza no seu estado mais selvagem e aos seus humildes habitantes que, sabiamente, geração após geração, têm sabido preservar esta verdadeira Jóia Asturiana.
Nas próximas linhas proponho aos leitores uma caminhada de um dia, que discorre maioritariamente em prados de altitude e que permite conhecer o Conjunto Lacustre de Somiedo. Este é constituído por um grupo de 5 lagos de origem glaciar (Cerveiriz, Almagrera, La Cueva, Calabazosa e Lago del Valle), conectados por vales também eles de origem glaciar e protegido por um maciço calcário imponente, com vários picos que se erguem a mais de 2000 m de altitude. Este típico ecossistema de alta montanha, para além do inegável valor geológico e paisagístico, alberga ainda uma importante comunidade de plantas e constitiu o habitat de numerosas espécies de mamíferos e aves, algumas ameaçadas - urso pardo (Ursus arctus), lontra (Lutra lutra), águia real (Aquila chrysaetos), abutre-do-egipto (Neophron percnopterus) e pardal alpino (Montifringilla nivalis).


Juvenil de águia-real deste ano em voos de iniciação

O trilho tem inicio na aldeia de Valle de Lago (1280 m) e discorre nesta 1ª parte no vale homónimo, na margem direita do rio, em direcção a montante. Na margem esquerda, podemos contemplar um espectacular bosque de faias (Fagus sylvatica), que cobre a base de imponentes picos, arestas e desfiladieros. Aqui e ali, no meio do denso bosque, vêm-se pequenos prados, com as respectivas brañas, onde o gado pasta tranquilamente...


Perspectiva do vale para jusante. Ao fundo a aldeia de Valle de Lago


Imagens bucólicas como esta são uma constante no início da caminhada


Após cerca de 20 minutos de suave ascenção encontramos uma bifurcação, devendo seguir o trilho da esquerda. A subida, agora mais acentuada, permite-nos ter vistas cada vez mais abrangentes, destacando-se, a sul, a impressionante face norte da Peña Chana (2068 m) e a sudeste, os Picos Albos (2075m) e o maciço da Penha Orniz (2194m)


O maciço da Peña Orniz (ao fundo) domina a cabeceira do Valle de Lago

O caminho segue em diagonal, sempre a subir, aproximando-se da base de uma parede vertical -Altu La Braña (1587 m), a qual temos de circundar até chegarmos a um pequeno planalto onde está edificada a Braña de Sobrepeña, com as suas cabanas características.

Construção tipo corro na Braña de Sobrepeña

A partir daqui, o caminho transforma-se num pequeno trilho, que sobe por uma pequena valina até a uma portela chamada Llomba de Camayor.
Neste ponto, olhando para leste, deparamo-nos com um amplo prado de altitude (Veiga de Camayor), a cerca de 1750 m de altitude, onde habitualmente, após o degelo primaveril, várias manadas de vacas pastam tranquilamente, ao abrigo das montanhas que o bordeiam. O trilho percorre toda a extensão desta imensa pradaria, praticamente plana, sendo uma óptima altura para recuperar o fôlego!


Veiga de Camayor. Ao fundo (à esq), insinua-se o maciço da Peña Ubiña (2414m)

Eis que chegamos, finalmente, ao primeiro lago, com o nome de Cerveiriz, pertencente ao grupo dos Lagos de Saliencia. Trata-se de um lago algo sombrio devido á proximidade da imponente face norte do pico Albo Oriental(2109 m).


Lago Cerveiriz

A partir de aqui abre-se um estradão de terra batida que dá acesso aos restantes Lagos de Saliencia.
O próximo a aparecer é a Laguna Almagrera, o mais pequeno de todos, e que normalmente está seco nos meses estivais.

A Laguna Almagrera, frequentemente seca durante o verão, serve de pasto às vacas asturianas

O Lago de la Cueva encontra-se logo a seguir e surge sob os nossos pés, dezenas de metros abaixo. Aqui a terra assume uma cor avermelhada, resquícios da actividade mineira para a extracção de ferro, que funcionou até 1978.


Lago de la Cueva (ou Lago de la Mina)

Já com o vale de Saliencia no nosso campo visual, dirigimo-nos em seguida para o último lago deste conjunto, o Lago Calabazosa. O tom azulado das suas águas é a sua característica mais visivel e apelativa. No entanto, é a profundidade das suas águas, que chega a atingir os 70m, que faz dele o lago mais profundo das Astúrias.

Lago Calabazosa (ou Lago Negro)

A próxima etapa será porventura a mais penosa, tendo em conta o desnível e, principalmente, a ausência de um trilho bem definido. Atravessa amplas zonas de relevo "karstico", próprio destes maciços de origem calcárea, por vezes labiríntico, com altitudes próximas aos 2000 m. Neste terreno a capacidade de orientação é vital, ajudada aqui e ali por pequenos montículos de pedras colocados pelos pastores (nas Astúrias chamam-se hitos). Em resumo, inicialmente caminha-se para sul em direcção à base do pico Calabazosa (2125 m), rodando depois para oeste.

Majada Calabazosa. Ao fundo perfilam-se as formas karsticas do maciço da Orniz

Pouco a pouco, já a descer, começa a aparecer no nosso horizonte a imagem familiar do vale onde tinhamos iniciado a caminhada... No entanto, sem qualquer aviso, o nosso coração volta a bater mais depressa! Aos nossos pés, 200m verticais abaixo, surge o paradisíaco Lago del Valle, o maior das Astúrias e um dos ex libris do Parque. É de cortar a respiração!!!

Lago del Valle e Vale de Lago: dois paraisos indissociáveis

A descida ao lago, embora algo abrupta, não apresenta grandes dificuldades.
A partir daqui seguimos tranquilamente por um estradão de terra batida até à povoação, sempre atentos às camurças que espreitam por detrás dos penhascos, aos corços e veados que, com o anoitecer, entram mais confiantes nos prados contíguos ao trilho e, quem sabe, à jovem águia real, transportando nas poderosas garras, com orgulho, a sua primeira presa...

14 outubro 2005

ÚLTIMOS VESTÍGIOS DO GRANDE PREDADOR

Publicada por Paulo Almeida Santos


Temos necessidade de recuar até à Idade Média para reportar a extinção do Grande Predador em Portugal, quando em 1670 foi morto na área da Peneda-Gerês o último urso pardo (Ursus arctos) em estado selvagem, indiciando, já nessa altura, a frágil sensibilidade Lusitana no que toca às questões ambientais.
A última prova física da presença do urso nas nossas serras está representada por construções primitivas, destinadas a proteger as colmeias, cujo mel teve, em tempos longínquos, importância estratégica na gastronomia e práticas medicinais populares. Cortin (Astúrias/Ancares), silha/colmeal (Gerês/Peneda/Montesinho), muros (Beira Baixa/Alto Alentejo) ou malhada (Serpa), são todos eles sinónimos para designar este tipo de edificações que, por sua vez, indicam uma ampla distribuição geográfica no contexto peninsular.
A sua origem remonta a um período histórico anterior ao séc. XVI, podendo admitir-se uma cronologia posterior à Época Romana.
No que diz respeito à estrutura, a sua forma é aproximadamente circular, com diâmetros que variam entre os 27 e os 12 metros. A parede, que pode atingir os 4 metros de altura e uma profundidade de 1 metro, é formada por lajes e blocos sobrepostos de xisto ou granito. São geralmente rematados no topo por lajes maiores, para impedir a entrada de animais selvagens. Existe ainda uma pequena porta de madeira para acesso ao interior.
Quanto à implantação, as silhas localizam-se quase sempre no fundo de vales, junto a linhas de água e em zonas de forte declive. De facto, a presença de água é imprescindível na produção apícola, para a diluição da papa utilizada na alimentação das larvas e para liquefazer o mel já cristalizado nas células. Por outro lado, a existência de mais vegetação nestas zonas constitui uma importante fonte de pólen para as abelhas.
Como foi referido anteriormente, a principal função destas construções é a de proteger contra os "ataques" de animais silvestres, nomeadamente o urso pardo (Ursus arctus), o texugo (Meles meles) e o saca-rabos (Herpestes ichneumon). Acrescenta-se ainda a protecção contra os incêndios e o vento, explicada em grande medida pela localização em zonas abrigadas e com grande humidade (vales fluviais).
Apesar de, entre nós, estas relíquias nos fazerem lembrar, com tristeza, a extinção de uma espécie tão importante com o urso pardo, alegra-me saber que, no norte da Península, o Grande Predador continua a vigiar as silhas em busca de alimento...

12 outubro 2005

PELAS ROTAS DA TRANSUMÂNCIA

Publicada por Paulo Almeida Santos



Ao percorrer os trilhos das montanhas do Ocidente Asturiano, coexistindo com o riquíssimo património natural, deparamo-nos com um legado etnográfico único, associado a uma milenária cultura pastoril, mantida intacta até aos dias de hoje.
Refiro-me às denominadas "brañas", conjuntos de cabanas edificadas em prados de altitude, servidas por fontes ou pequenos riachos e que, desde a Idade Média, continuam a ser utilizadas pelos vaqueiros como fonte de alimento e refúgio para as suas manadas, desde o início do degelo primaveril, até às primeiras neves outonais.
No que respeita à arquitectura, podemos encontrar dois tipos principais de brañas. As mais primitivas, denominadas corros, correspondem a pequenas cabanas de pedra com forma circular cujo tecto é impermeabilizado por um tapete de erva. As mais recentes e elaboradas, as cabañas de teito, também com paredes de pedra mas de forma rectangular, têm um tecto formado por uma estrutura de madeira, sobre a qual é colocada uma cobertura (teito), composta por giestas e piornos. Estes teitos são impermeáveis e suportam o peso das intensas nevadas que se abatem sobre estas regiões no inverno, permitindo o abrigo perfeito para os pastores e suas manadas.
Em Portugal, mais concretamente nas serras da Peneda, Gerês e Amarela, podemos encontrar construções similares, embora com diferente arquitectura. São as chamadas brandas ou verandas (Bosgalinhas, S. Bento do Cando, Mosqueiros, Aveleira...), a maior parte em ruinas, abandonadas pelos pastores, practicamente "extintos" destas serranias e esquecidas pelos órgãos responsáveis pela conservação de tão importante herança etnográfica.

Conjunto de corros em Braña de Sousas (PN Somiedo)



Restauração outonal de uma cabaña de teito nas Morteras de Saliencia (PN Somiedo)